Estação Onze, de Emily St. John Mandel | Resenha
‘Estação Onze’: uma obra sufocante, transformadora e arrebatadora
Quando tudo acaba, o que fica? Absolutamente nada, a não ser nós mesmos (se dermos essa sorte, ou não). Livro bom é aquele que mexe com nossos mais íntimos e obscuros sentimentos. Estação Onze, de Emily St. John Mandel, publicado pela editora Intrínseca, é daqueles títulos que nos fazem não apenas pensar ou refletir, mas também nos questionar sobre o verdadeiro sentido da vida e de nossa passagem por esse mundo. Nos incomoda quando joga na nossa cara que as “prioridades” atuais são tão descartáveis, nos assusta por mostrar como estamos todos vulneráveis e nos emociona ao ressaltar a capacidade do ser humano, ainda que em suas mais primitivas e precárias condições, de ser solidário e sobrevivente.
Um ator morre em pleno palco, durante uma apresentação da célebre peça Rei Lear, de Shakespeare. Um paparazzo com treinamento em emergência médica que está na plateia rapidamente presta socorro. Porém, o tempo lhe foi implacável e não permitiu que ele salvasse a vida do famoso e polêmico Arthur Leander. A tragédia foi testemunhada por todos os presentes no teatro, entre atores e espectadores, incluindo a jovem Kristen Raymonde, de oito anos, que fazia parte do espetáculo. O que nenhum deles sabia é que aquela noite poderia ser a última de suas vidas. Uma terrível gripe assola o planeta, dizimando praticamente toda a população. Duas décadas depois, as histórias desses personagens ainda estão ligadas, cada uma a sua maneira, junto com aqueles (poucos) que sobreviveram.
Diferentemente de outras distopias, Estação Onze nos apresenta um ponto de vista marcante de uma tragédia não tão impossível – o que, para mim, tornou o livro ainda mais profundo e angustiante -, onde o importante, na verdade, não é descobrir O QUE fazer após a calamidade – pois isso todos sabem, sobreviver -, mas, sim, COMO fazer. E é aí que a obra nos arrebata, mostrando a complexidade do ser humano, através de uma perspectiva única da vida e dos relacionamentos.
“Porque sobreviver não é o suficiente”
A narrativa construída através de alterações temporais – alternando entre passado, presente e futuro -nos permite acompanhar de forma detalhada o desenvolvimento de cada personagem e suas respectivas conexões. Isso, a meu ver, faz com que o leitor se aproxime dessas criações e crie uma identificação. É impressionante seguir os acontecimentos posteriores à calamidade, mas igualmente revelador e surpreendente desvendarmos o que aconteceu antes de o mundo deixar de ser da forma como conhecemos. A partir do momento em que a humanidade é quase extinta, cabe aos que restaram reconstruir a civilização.
“Se o inferno são os outros, o que é um mundo onde não há quase ninguém?”
Emily St. John Mandel faz um verdadeiro manifesto a respeito das relações sociais; baseada em nossos piores pesadelos, relacionados ao fim e à solidão, a autora repreende a mesquinharia da sociedade atual, com seus problemas e prioridades superficiais. O choque de sequer cogitar a possibilidade de vivenciar algo, no mínimo, parecido, e perceber que você também não está imune a questões tão banais é sufocante e, ao mesmo tempo, libertador e transformador. Uma verdadeira catarse pessoal. Sim, porque você passa a se questionar e a se envolver com aqueles personagens, aquelas vidas e seus exemplos. Você torce para que eles se superem, para que eles consigam passar por tudo aquilo, mas também se sente mal por ter a noção da fragilidade do ser humano, principalmente em momentos de crise.
“Não havia mais internet. Não havia mais redes sociais… Não havia mais como ler e comentar sobre a vida dos outros, logo não havia mais como se sentir menos sozinho. Não havia mais fotos de perfil.”
De maneira quase poética, Estação Onze faz referência à arte, à literatura – que belos momentos da Sinfonia Itinerante, uma ode a Shakespeare -, à tecnologia e principalmente ao amor. Seja o amor pelo próximo, pela família e por todos aqueles que lhe são caros. Porque, no final de tudo, você vai perceber que o importante é ter as pessoas que você ama por perto. A consciência de ter que recomeçar e envelhecer sozinho – que “experimentamos” no livro – é, de longe, a pior sensação já descrita. A solidão, o esquecimento e a indiferença são a verdadeira tragédia.
“O inferno é a ausência das pessoas de quem temos saudade”
Impossível conseguir expressar toda a profundidade simbólica desta obra num único texto. Nem mesmo a sinopse do livro faz jus ao seu enredo tocante. A sua apresentação, porém, é digna da trama contada, com uma capa simplesmente impecável e que lhe convida automaticamente a entrar, sem pensar, nessa jornada introspectiva.
Um museu nos recorda que o que levamos dessa vida não diz respeito a coisas materiais. Um celular, um computador, sapatos, nada disso tem, de fato, valor, a não ser pela nostalgia de uma época em que as coisas eram mais fáceis, cômodas. Dependemos de nós mesmos, da nossa capacidade de superação e da coragem de seguir em frente. O verdadeiro valor são as relações que construímos – e mantemos – ao longo da vida. As pessoas que, mesmo longe ou não mais presentes fisicamente, ainda fazem toda a diferença e nos ajudam a continuar, independente do que aconteça.
Saiba onde comprar:
Amazon – Livraria Cultura – Livraria Travessa – Saraiva – Submarino