Nós, de David Nicholls | Resenha
‘Nós’: David Nicholls mexe com o emocional do leitor ao mostrar a dura realidade de um casamento infeliz
O casamento, em minha humilde opinião, é a maior declaração de amor que duas pessoas podem fazer. Afinal, quer representação melhor desse sentimento do que você escolher compartilhar a sua vida, suas experiências e sonhos, qualidades e defeitos com alguém e formar uma família? Então, se é de livre e espontânea vontade de ambos os lados, o que pode dar errado? David Nicholls responde. Em Nós, novo livro do autor de Um Dia, ele nos mostra a dura realidade de um relacionamento estável, sob o ponto de vista de uma família que em nada difere do que temos hoje. E é exatamente isso que arrebata o leitor: a sensação de proximidade com toda aquela situação.
Se Nicholls nos emocionou e fez com que nos apaixonássemos pela história de Emma e Dexter (estou contando as horas para encontrar Nicholls na Bienal e tirar a limpo aquele final que me deixou acordada durante toda a madrugada com uma crise compulsiva de choro), em Nós, ele nos incomoda ao mostrar que, às vezes, nem tudo sai do jeito que planejamos, que a vida (a dois) não é um mar de rosas, mas que isso não é necessariamente ruim, no fim das contas. Além, é claro, de nos presentear com um roteiro detalhado de uma bela viagem pela Europa.
A trama apresenta a história de Douglas Petersen, um bioquímico de 54 anos que é acordado pela esposa, Connie, no meio da noite, após 25 anos de casamento, com um pedido de divórcio. Simples assim. A partir daí, o homem que sempre gostou de ter o controle das coisas, que não admitia algo fora do lugar, se viu assustado com a possibilidade de perder a própria família, de uma hora para outra. Isso também porque o filho do casal, Albie, está prestes a sair de casa para entrar na faculdade. No meio de tudo, havia o “Grand Tour”, a grande viagem que eles haviam planejado para que fossem as “últimas férias em família”, antes que o filho começasse a viver a própria vida, deixando os pais sozinhos em casa, para desespero da mãe.
Sinceramente? Não culpo Connie por sua decisão. Apesar da “boa vontade”, Douglas se mostra um homem bastante difícil, extremamente racional e, por vezes, controlador e egoísta. Por ser um cientista e ter sido criado com extrema rigidez e praticamente nada de afeto, sua personalidade foi moldada para ser o cara “perfeito”, inteligente e bem-sucedido, que não consegue entender os pequenos prazeres da vida, a não ser que eles estejam relacionados a algo que envolva ciência e possa ser explicado ou que traga estabilidade. E é justamente essa dificuldade de ser “jogar”, de curtir cada momento sem maiores preocupações ou, pelo menos, o mínimo delas, que acaba afastando Connie, sua mulher – uma artista sobre todos os aspectos e que preza a sua liberdade -, e transforma o relacionamento deles – inicialmente equilibrado e cheio de emoção, uma vez que ambos eram completamente diferentes, porém, se completavam – num marasmo, dentro de um ambiente de total infelicidade. Não que ela esteja inteiramente certa. Pelo contrário.
Por ser uma alma “livre”, digamos assim, Connie também se recusa a entender o lado de alguém que sempre foi retraído, introvertido e não possui a mesma facilidade de se relacionar com as pessoas. E toma atitudes um tanto quanto questionáveis, que tenta justificar utilizando os seus próprios conflitos internos. O que, claramente, é errado e injusto. Dessa mistura, nasce Albie, o filho rebelde. O adolescente revoltado e mimado, que idolatra a mãe e faz questão de ignorar o pai, culpando-o por tudo de ruim que possa lhe acontecer. Novamente, é possível entender uma parte dessa revolta. Douglas tinha tanto medo de agir com o filho do mesmo jeito que o seu pai, que, sem perceber, estava se transformando no próprio.
Em uma entrevista, David Nicholls confidenciou que seu relacionamento com o pai não foi dos melhores, longe disso, e que esse ressentimento ficará marcado. Nós, ele explicou ainda, foi uma chance de colocar isso para fora, para que ele pudesse superar. E é notória essa tentativa no livro. A amargura de Douglas ao perceber que o filho não seria exatamente o que ele esperava, que ele não iria seguir os SEUS planos, que não se interessava pelas mesmas matérias e/ou assuntos é de sufocar o leitor, em determinados momentos da leitura. Por outro lado, as constantes tentativas de Albie de testar o pai, suas atitudes até infantis para que ele pudesse provar o seu ponto de vista e mostrar que poderia ser dono da própria vida e que claramente não precisava de Douglas para guiá-lo também são partes bastante incômodas. Tanto rancor, tanta indiferença e intolerância por parte de pai e filho… Nicholls sabe como mexer com as nossas emoções.
Para Douglas, a viagem é a última chance que ele tem de se redimir, de reunir a própria família. Mesclando o tempo real – durante todo o Grand Tour – com o passado, o autor nos mostra como o relacionamento de um casal que, apesar de todas as desconfianças de amigos e famíliares, conseguiu superar alguns dos maiores obstáculos que um casamento pode encontrar, mas como todo o amor, o respeito e o carinho que um sentia pelo outro podem desaparecer sistematicamente. E pior, com eles tendo consciência disso. Os diálogos tão verdadeiros e profundos de Nicholls conseguem compensar, em determinadas situações, a falta de ritmo da leitura. Não espere uma trama agitada ou repleta de emoções. Por acompanharmos os últimos momentos de um casamento, somos obrigados a passar por todo o duro processo ao lado dos personagens. É impossível não nos envolvermos e, por isso mesmo, evitarmos ao máximo o que nos espera no final. Isso, confesso, me cansou um pouco, até por eu já ter absorvido totalmente a história e não querer mais passar por aquele sofrimento, aquela angústia (sim, eu meio que “entro” nas histórias dos livros).
Aliás, por falar em final, outra característica do escritor é nos pegar de surpresa, quando achamos que não haveria mais nada a esperar. Em Nós, novamente, Nicholls não poupa os leitores nem promete algo que ele sabe estar bem distante daquela realidade. O que não quer dizer que aquilo que o autor planejou também já fosse o esperado. Pelo menos, para mim, não foi. Ao terminar o livro, senti um misto de alívio, compaixão e, sim, certa revolta. Alívio por ter passado por tudo aquilo (ao ler o livro), sem verdadeiramente ter vivenciado as situações (Deus me livre!). Compaixão por saber que, infelizmente, o tipo de família e de problemas retratados por Nicholls não são exclusivos de algumas páginas. E “revolta” por ser totalmente vulnerável à escrita de um autor que sabe, como ninguém, despir o ser humano de todos os seus receios, conflitos e questionamentos. Admito que, por muitas vezes, a leitura me tirou do sério, a ponto de eu – num lapso de instabilidade psicológica – querer dar umas sacudidas em Douglas, Connie e Albie. Nicholls, nunca mais faça isso comigo. Nos vemos na Bienal!
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