Jovens de Elite, de Marie Lu | Resenha
‘Jovens de Elite’: a dualidade do ser humano refletida numa trama fantástica épica
Qual a diferença entre o bem e o mal? Como podemos julgar as atitudes e sentimentos do outro quando nem mesmo temos controle dos nossos? Na luta pela sobrevivência, vale a coragem, a força e a determinação daquele que consegue superar as adversidades e as mazelas da vida. A linha tênue entre o mocinho e o vilão separa apenas quem não se deixa sucumbir aos obstáculos e enfrenta os desafios. É esse misto de essência, dúvidas e reflexões que Marie Lu nos traz em Jovens de Elite, publicado pelo selo Rocco Jovens Leitores, da editora Rocco.
O primeiro volume da nova série da autora da trilogia Legend traz uma história épica e fantástica situada na era medieval sobre jovens que desenvolveram estranhas marcas e habilidades especiais ao sobreviverem a uma febre que dizimou boa parte da humanidade. Entre eles, Adelina, uma adolescente rejeitada pelo pai desde que pegou a doença que a deixou “marcada”. Cansada de ser desprezada e rebelando-se ao destino que o pai queria lhe impor, ela resolve fugir e acaba tendo o seu caminho cruzado pelos Jovens de Elite, uma sociedade cujos membros são considerados por uns como heróis e por outros, seres demoníacos e uma ameaça. E é nesse mundo sombrio, envolvendo magia e política, que Adelina começa a se descobrir e a ter que lidar com o lado sombrio do seu coração, que pode ser tanto o seu maior trunfo quanto a sua maldição.
Eu não havia lido a trilogia Legend, mas, quando soube de Jovens de Elite – principalmente quando descobri a sua sinopse -, ficou claro para mim que eu tinha que ler. Quer dizer, como não ficar no mínimo curiosa com uma distopia com ares de X-Men encontra Game of Thrones e ainda passada num período que facilmente remete à Renascença Italiana? E a autora ainda soube como explorar uma questão muito interessante para estimular ainda mais a nossa curiosidade: desde o início, fica claro que Adelina não é uma mocinha padrão. Aliás, nem “mocinha” ela pode ser considerada. Marie Lu considera Adelina uma anti-heroína. Quase uma vilã. Bom, com todo o respeito à própria autora, não sei se chego a concordar.
Veja bem, Adelina foi acometida pela febre quando ainda era apenas uma criança e viu a mãe morrer em decorrência da doença. Além disso, sua irmã caçula, que também foi infectada, nada sofreu e permaneceu com sua beleza intacta. Adelina, por outro lado, levará uma cicatriz e suas consequências para o resto da vida. Fora que seu pai, depois de tudo isso, nunca se esforçou para melhorar a situação, pelo contrário. Despejou todo o seu rancor e ressentimento na filha mais velha, humilhando-a diariamente e preterindo-a de ter uma adolescência, pelo menos, razoável. E sempre, sempre, deixando todo o amor e preferência para a caçula. Como você acha que uma adolescente lida com tudo isso? Não sorrindo, é claro. Principalmente quando tem a sua vida ameaçada pelos caprichos do pai, que acha que pode lhe infringir um destino tenebroso, apenas para se livrar do que ele considera um “problema”, mesmo que seja a sua própria filha. Adelina tomou a decisão que qualquer jovem um pouco mais rebelde toma quando acha que tem sua liberdade limitada e/ou ameaçada: fugir.
Como se a história em si não fosse cativante o bastante por todos os fatores, é na construção de seus personagens que Marie Lu nos cativa e hipnotiza de vez. Poucas vezes vi um desenvolvimento tão primoroso e, ao mesmo tempo, ambíguo de personalidades tão distintas e carismáticas. Adelina, ao meu ver, é um diamante bruto. É uma força que ficou trancafiada por anos que está se descobrindo e aprendendo que suas imperfeições não são um defeito. Pelo contrário. Porém, depois de crescer ouvindo xingamentos e desaforos e sendo diariamente agredida, não é de se espantar que todo esse sofrimento reprimido deixasse marcas não apenas físicas, mas principalmente emocionais. E é por causa disso que a escuridão há muito tempo cultivada em seu coração transforma a personagem. Não acredito que sua essência seja totalmente má, mas seus traumas do passado contribuem para que a jovem não consiga enxergar uma perspectiva mais leve de futuro, muito menos abaixar a guarda e aprender a confiar em qualquer outra pessoa novamente. E um ser humano reprimido e basicamente cético é extremamente inseguro e instável. Ainda mais com um grande poder.
Mas não é apenas Adelina que brinca com os nossos corações. Praticamente todos os personagens do livro balançam entre o bem e o mal, se é que podemos dizer assim. É impressionante como Marie Lu nos presenteia com características tão marcantes, que nos fazem amar e odiar alguém ao mesmo tempo. Enzo, Rafaelle, Lucent, Gemma, Michel, Dante e, até mesmo, Teren. Todos, sem exceção, não podem ser considerados mocinhos nem vilões. Sim, eu sei. Incluo Teren nessa também. Todos lutam por uma causa e acreditam que seus ideais são para o bem do que restou da sociedade. O problema é que todos também entendem que para atingir os seus objetivos estão dispostos a fazer o que for preciso, inclusive matar. Como considerar mocinho alguém capaz de tirar a vida de outra pessoa? Mesmo que alegue que seja para um “bem” maior? Quem definiu o que seria melhor? E o que seria melhor para uma sociedade totalmente dividida? A verdade é que todos ali são iguais. Todos têm seus questionamentos, dúvidas, receios e ambições. E fazem o que for preciso para ganhar. Essa dualidade é simplesmente fantástica, pois abre muitas possibilidades para a história, que nos deixa sem fôlego desde as primeiras páginas.
Outro ponto muito interessante é que a trama, apesar de se passar num tempo medieval, é bastante atual. Afinal, ainda hoje temos conflitos gerados pelo preconceito, pela intolerância e pela ganância de governos totalmente autoritários. E tudo isso leva a própria sociedade a lutar entre si, a se dividir e a sofrer pela desigualdade. Nada que infelizmente já não tenhamos presenciado. Ainda que o livro seja narrado em primeira pessoa, não temos apenas o ponto de vista de Adelina. Outros personagens também narram alguns capítulos, o que torna o ritmo de leitura ainda mais ágil e surpreendente. Cheio de reviravoltas e embates psicológicos (para os leitores, é claro, falo por experiência própria), Jovens de Elite é uma leitura literalmente fantástica para os fãs do gênero, com um final épico e um gancho para deixar qualquer um ansiando desesperadamente pelo próximo volume. Fica a dica, editora Rocco! 😉
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