Todo Dia a Mesma Noite: A História não Contada da Boate Kiss, de Daniela Arbex | Resenha
‘Todo dia a mesma noite’: um livro sobre empatia, resistência e cinco anos de impunidade
Minha história com Daniela Arbex é de longo tempo. Vem lá do ano de 2013, quando a autora lançava Holocausto Brasileiro e eu circulava pelo andar do curso de História da Unirio com o livro sempre em mãos e na altura dos olhos. Para quem não sabe, há uma parte da academia que torce o nariz para livros assinados por jornalistas, principalmente quando eles flertam com temas históricos. Rixa boba. Acredito que todos devem aprender com o que o outro tem a nos oferecer de melhor – e, nesse caso, jornalistas costumam ser ótimos escritores e excelentes contadores de histórias.
Mas não tardou para que meus colegas de curso também começassem a andar pelo campus carregando o mesmo livro. Eles descobriram o que eu já sabia: Arbex é mais do que uma boa escritora, é uma excelente jornalista. Ela transforma reportagem em arte e faz isso com muita verdade e ética. E é por isso que eu, como fã declarada da autora, fiquei ansiosa pelo novo lançamento da editora Intrínseca: Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss.
Logo de cara fiquei muito intrigada com o título. Em se tratando de um acontecimento recente – que completou cinco anos agora, em janeiro de 2018 -, todos nós sabemos um pouco sobre o que aconteceu naquela noite em Santa Maria. No meu caso, me lembro claramente que fiquei em choque diante da TV, com a cena de um grupo quebrando as paredes da boate. Essa cena se repetiria em vários outros jornais, que não tardaram em dissecar o acontecimento com entrevistas, reconstituições e reportagens especiais (muitas delas sensacionalistas). Então, pensei assim que abri o livro: que história não contada é essa?
Resistência. Essa é a palavra que conduz toda a abordagem do livro e é usada pela própria autora: “Para as vítimas indiretas do incêndio na Kiss, resistir não é uma escolha, mas um imperativo de sobrevivência”. Daniela resolveu dar voz aos pais, familiares, amigos, bombeiros, médicos, enfermeiros e toda a população que não estava na Kiss, mas que passou de forma traumática pelo acontecimento.
Sim, traumática, pois, segundo o livro, a maior parte dos profissionais de saúde que atendeu as vítimas naquele 27 de janeiro está em tratamento psiquiátrico até hoje. A dor dos familiares também não poderia ser menor. Em uma página conhecemos uma mãe que, ao perder a filha mais velha na Kiss, rejeitou a mais nova e tentou suicídio (felizmente, uma tentativa frustrada). Em outra, sabemos de crianças que ficaram órfãs naquele dia, pois pai e mãe estavam na boate. Essas são apenas algumas das muitas histórias de resistência que Arbex dá voz, sempre de forma imersiva, colocando o leitor dentro daqueles momentos, daquela noite que se repete todos os dias para essas pessoas.
Um dos artifícios de Arbex para criar essa imersão são as constantes analogias que permeiam o livro. De forma didática, ela compara a situação de Santa Maria a um cenário de guerra. Era preciso estratégia dos bombeiros para “atacar” a Kiss e retirar as pessoas de lá e também transportar os sobreviventes que precisavam de atendimento médico (tal suporte foi feito pela Força Aérea), disciplina e frieza para identificar e organizar os mortos no ginásio do Centro Centro Desportivo Municipal e voluntários de toda a cidade para ajudar em uma situação sem precedentes.
Se, por um lado, essas analogias nos ajudam a entender melhor uma realidade que jamais imaginaríamos, em outras, não funcionam tão bem. Uma das minhas poucas críticas ao livro Holocausto Brasileiro é justamente ao título e, a meu ver, o mesmo erro se repete agora, em Todo Dia a Mesma Noite. Nesse último, há um capítulo intitulado Holocausto dos tempos modernos, que compara o envenenamento dos frequentadores da Kiss com aqueles causados nas câmaras de gás nos campos de concentração nazistas. É fato que a substância tóxica era a mesma, mas, ao se apropriar de um acontecimento para se referir a outro, ambos perdem sua singularidade e a narrativa entra em uma linha tênue entre o didático e o sacal.
É verdade que esses probleminhas devem incomodar mais a “historiadora cricri” que habita em mim do que os leitores em geral, porque a obra como um todo é muito necessária. O incêndio na boate deixou 242 mortos e mais de 600 feridos. Somem a esses números todas as pessoas que estavam ligadas indiretamente ao ocorrido e mais cinco anos de impunidade. O resultado é tristeza, revolta e vazio. Mas, graças à Daniela Arbex, o resultado também é empatia. E não é isso que procuram todos os historiadores, jornalistas e escritores com suas obras, afinal?