Uma reflexão sobre o encontro com Neil Gaiman
Live foi realizada pela FSB Comunicação, com o apoio da editora Intrínseca e a CCXP
Antes de qualquer coisa, eu vou deixar logo bem claro que sou muito fã do Neil Gaiman — então, prepare-se para ler um texto no qual eu só babo por tudo o que esse homem brilhante fala. E, como eu não consigo escrever qualquer coisa sem dar pitaco, você vai ver muitos comentários e opiniões minhas — todas concordando com o que Gaiman fala, porque… porque sim.
Nesta quinta-feira (26), foi realizada uma live com o autor, organizada pela FSB Comunicação, com o apoio da editora Intrínseca e a CCXP, mediada por Jennifer Queen e acompanhada por Filipe Vilisic e Alexandre Callari. Oficialmente, o encontro se baseou — embora eu não ache que tenha sido só isso — em storytelling.
Os fãs de Gaiman bem sabem que ele é ótimo nisso.
A conversa começou logo com a pergunta: alguma coisa mudou no storytelling no último ano? E para o storyteller?
Gaiman disse que sim, que a Covid mudou tudo e mostrou para todos nós o quão frágil é o sistema no qual vivemos e que a forma como se faz história mudou também. Meios de comunicação, como a televisão, se tornaram mais importantes, bem como ficções literárias, onde as pessoas passaram a procurar por conforto.
E, pessoalmente, acho que a quarentena fez com que as pessoas redescobrissem a leitura e perceberem como ela é maravilhosa — alguma coisa de bom nisso tudo tem que ter, né.
Gaiman falou, em seguida, sobre como explorou vários meios de se contar uma história — prosa, quadrinhos, séries, filmes etc — e disse também que a forma como ele faz para tratar as suas histórias com a máxima profundidade possível, em todas essas mídias, é estando sempre perto da produção ou até se envolvendo diretamente.
Achei bem interessante quando ele falou sobre nem saber o que é fantasia e que esse é um título que ele considera unicamente comercial e uma forma de as livrarias organizarem as estantes. Gaiman declarou que a fantasia é algo que varia com a percepção e disse ainda que é um erro achar que ela era menosprezada nos anos 30, 40 e 50 — temos grandes obras dessa época, que já eram lidas e amadas, afinal, olha o Tolkien aí. Ele afirmou fazer o que todo leitor quer: ler o que deseja e gostar do que gosta — admita, isso é poesia.
Ao ser perguntado se todas as histórias já foram contadas, ele deu a melhor resposta: “isso não importa”. E ainda acrescentou que as histórias que apenas nós mesmos somos capazes de criar ainda não foram contadas, logo, ainda há histórias não contadas. Mas, levando em consideração a ideia oculta na pergunta, de ser possível ser original hoje em dia, ele citou Jonathan Carroll, que disse que o trabalho de um autor é escrever de forma nova. Então, uma história nunca vai ser contada da mesma maneira por dois autores diferentes.
Ele falou também sobre a importância da infância e como, em suas obras, tentou fazer com que os adultos não se esquecessem dessa época — quando não se tem poder algum, nem entende o mundo e suas regras etc. E pareceu estar bem curioso quanto a como será o futuro das crianças que estão vivendo os tempos atuais.
A partir daí, eu tenho que admitir que a maioria das respostas dele me deu arrepios — arrepios bons.
Como o momento em que ele falou do seu processo criativo. Ele disse que, quando pensa em ficção, pensa em acreção. E, apesar de nunca ter pensado dessa forma tão poética, eu, em toda a minha insignificância e depois de ficar matutando sobre isso, concordo plenamente. Segundo as palavras de Gaiman, uma ficção vai crescendo, como uma bola de neve rolando montanha abaixo, até se tornar uma avalanche, chegar no vale e destruir tudo.
E é verdade, é exatamente assim. Começa pequeno, com uma ideia, uma impressão ou algo que nos chama atenção no dia a dia. Então, começamos a pensar sobre isso, despropositadamente. Até que sentamos e pensamos no sentimento disso e a história começa a ganhar forma. Depois de pensar e entender melhor essa ideia, você começa a escrever de algum ponto de partida — que pode mudar ao longo do caminho ou no final, quando já está tudo definido.
Eu me identifiquei muito com esse conceito e, por isso, chego a pensar que todo processo de criação de uma história é assim — mas devo estar errada, certo? Pessoalmente, acho bem bonito que, de uma coisa tão pequena e abstrata como uma ideia, surja algo complexo e imenso como uma história, que abrange todo um universo — pode até ser fictício, mas e daí?
Outra coisa que ele disse com a qual eu me identifiquei muito foi que o começo da história é a uma das últimas coisas que ele escreve, porque assim ele já sabe como termina e como soa. Foi bem nessa parte que eu fiquei arrepiada, porque escrever é — senão sempre, mas na maioria das vezes — uma atividade solitária e eu, pelo menos, não falo muito disso. Portanto, ver que outra pessoa passa por um processo tão parecido é bem motivador. Se você também é um escritor e faz isso, então, também vai se identificar — toca aqui!
Ainda mais vindo de uma pessoa que eu admiro.
Mas, voltando para a conversa com o Gaiman, ao ser perguntado sobre o papel da ficção na produção da empatia, ele disse algo importante; que ainda acha, nesses tempos que estamos vivendo, cheios de discursos e atitudes extremistas, que essa é justamente uma função da ficção, por causa da sua diversidade — mesmo que, por vezes, ela desperte antipatia por isso — e pela incrível capacidade de colocar o leitor sob o ponto de vista de alguém que não é ele mesmo e que, muitas vezes, é bem diferente dele e é tão importante quanto ele.
Eu nunca tinha parado para pensar nisso — não sou profunda o suficiente, desculpe.
Gaiman continuou e disse que é natural que se pense em absolutamente tudo no processo de criação. E essa é a única coisa que ele falou que acho que concordo apenas em parte — porque eu estou concordando com absolutamente tudo até agora. Eu não acho que isso seja natural. Acho que é algo que o autor adquire com o tempo e estudo. Pensar e criar uma história é delicioso, mas não é algo fácil de se fazer — senão, todo mundo faria. Mas concordo totalmente quando ele disse que o mais importante sempre será a voz da história. Esse foi mais um momento em que ele falou algo com o qual eu me identifiquei na hora. Gaiman disse que, mesmo sabendo tudo o que acontece na história que está criando, isso não o faz querer escrevê-la. Não até saber quem está contando a história e por que ela está sendo contada. Descoberto isso, não escrever se torna bem difícil.
Senti outro arrepio.
Quando perguntaram sobre o que ele achava quanto ao que dizem sobre o texto ter que ser escrito de uma vez e furiosamente — do contrário, perde a força —, citando Robert Howard, que diz ter escrito Conan de uma só vez, ele começou com uma resposta irônica: “Antes de mais nada, o que a sua pergunta nos diz, imediatamente, é que Robert Howard não era casado, não tinha nenhum relacionamento significativo e, definitivamente, não tinha filhos”. Então, ele discorreu sobre isso, falando que, depois de despertada a ânsia por escrever, poder se desligar do mundo e simplesmente escrever é algo mágico. Mas que ele, pessoalmente, sempre precisou se organizar muito para poder fazer algo assim e que, normalmente, não consegue.
Então, ele falou uma coisa linda: que, para ele, os melhores momentos são aqueles em que ele se vê como o primeiro leitor.
E, sim, essa é uma emoção que ninguém pode tirar de nós. Não importa se o livro vai ser publicado, não importa se vai ser um sucesso ou não, a emoção de saber que você é a primeira pessoa a ler aquela história só perde, na minha opinião, para a emoção de saber que você a criou e que fez o seu melhor.
Foi bem nesse momento que ele disse algo que eu tenho certeza de que nunca vou esquecer e citarei aqui exatamente como ele falou — tão exatamente quanto possível em uma tradução, pelo menos: “As palavras vão pingando de seus dedos como diamantes líquidos”.
Mais um arrepio.
Por outro lado, ele também disse que essa sensação maravilhosa não acontece todos os dias e que uma pessoa que escreve incessantemente apenas quando tem esse nível de inspiração nunca poderá ser um escritor de livros, porque escritores de livros escrevem mesmo sem inspiração; e que isso não diminui a magia do processo, mas reforça que o mais importante é criar um espaço onde a arte possa ser feita.
Na pergunta sobre qual é a sua maior preocupação, ele falou que é fazer o leitor se importar a ponto de querer virar a página. Correndo o risco de estar generalizando muito agora, eu acho que, se essa não é a maior preocupação de todo autor, tem alguma cosia errada. Ele ainda disse que, se o autor se importar com a história, isso será transferido para o leitor.
Ao ser questionado sobre suas referências — os leitores de Gaiman, com certeza, já notaram que ele faz uso de muitas referências em suas histórias —, ele disse que escreve para todos, mas poucos vão conseguir pegar tudo o que ele quer dizer, porque ele apenas joga a referência na história, sem explicá-la. Mas, segundo Gaiman, isso não é um problema, porque a história é a história e, se a pessoa pegar as referências, é um bônus.
Ele também disse que, para um autor se manter conectado com o público e não perdê-lo para o tempo que vai passando, ele precisa ter consciência de que está envelhecendo e não tentar parecer relevante para as novidades da atualidade que ele não entende. Gaiman, inclusive, chegou a brincar ao falar que nunca escreveria sobre TikTok, já que ele não entende nada sobre.
O escritor falou ainda dos seus sonhos — sonhos mesmo, os que a gente tem quando dorme, sabe? —, e o que eu percebi foi que, se ele escrever um livro baseado em um dos sonhos dele, eu provavelmente compraria.
Ao perguntarem sobre como é colaborar com outros artistas — só para comentar, eu achei bem bonitinho que ele chame autores de artistas, não vejo isso no Brasil, mas soa bem e acho que é verdade, né? —, ele afirmou que a melhor parte disso é poder brincar com outros autores, mas que nem todos sabem dividir. Porque, uma hora, você está criando conteúdo, mas, em outra, é uma competição de ego.
Em seguida, nós, brasileiros, passamos por um momento vergonhoso, quando trouxeram à tona o triste episódio no qual alguns de nossos compatriotas criticaram a adaptação de Sandman. Ele respondeu dizendo que foi estranho ver pessoas criticando Sandman sem terem lido Sandman — e que, lamentavelmente, isso foi uma atitude apenas dos brasileiros. Minha vergonha, nesse momento, atingiu níveis que me impedem até de tecer comentários aqui.
Gaiman terminou mandando uma mensagem, dizendo que, nesses tempos pandêmicos que estamos vivendo, o mais importante não é pensar “vamos sair dessa”, mas na bondade para com nós mesmos e na compreensão de que o mundo está de cabeça para baixo, quando muitas regras não se aplicam e estamos todos estressados; e que, talvez daqui a cinco, 10 ou 20 anos, vejamos ficções pandêmicas, como vemos ficções sobre a Primeira Guerra Mundial.
Ou seja, o tempo vai passar e o hoje vai se tornar história.
É com essa bela reflexão que eu vou terminar esse texto e te incito a ir até o canal da Intrínseca no Youtube para assistir a essa entrevista sensacional.