Especial Dia das Crianças: o poder da escolha e da amizade
Já confessei diversas vezes aqui no Vai Lendo que era uma criança que detestava ler. Daquelas que tinham urticária só de pensar em um livro. E muito disso se deve aos livros suplementares. Não me lembro ao certo quantos eu tinha que ler por ano, acho que eram quatro – já que eram quatro bimestres – , e cada um gerava uma prova ou trabalho, sem contar os suplementos – encartes com exercícios sobre o livro -, que era a maneira de a professora avaliar se o aluno tinha ou não lido. Nem preciso dizer que me lasquei em vários deles. Afinal, era muito difícil, MUITO MESMO, alguma dessas leituras impostas me agradar.
Enfim, toda essa contextualização é para contar uma história que há tempos quero compartilhar aqui no site, mas não sabia aonde ela se enquadraria. Inclusive, quando surgiu a proposta de fazer o especial Dia das Crianças para que nós, colaboradores do Vai Lendo falássemos sobre os livros que marcaram a nossa infância, pensei até em me abster, já que não lia nada além de Turma da Mônica (tema que a Ju já tinha escolhido) e considero Harry Potter uma transição minha para a adolescência. Infância mesmo não tinha nada! Aí, me veio a lembrança do dia em que, mesmo detestando livros, optei por um em prol da amizade.
Tudo começa num passeio escolar de fim de ano. Não me lembro ao certo o ano, pode variar entre 1995 e 1997. O evento era um dia no clube: com piscina, churrasco e festa à tarde e um divertido amigo oculto (oba!). Como nós éramos crianças, as professoras optaram por fazer o seguinte esquema: cada aluno comprava um presente unissex e sorteava na hora. Acredito que a adoção deste modelo se dá por duas razões: crianças não são muito boas em guardar segredos – e provavelmente contariam quem tiraram – e também pelo fato de, por alguma eventualidade, se alguém não pudesse ir ao passeio, outro ficasse sem presente. Imagina o drama… Por isso, era melhor fazer com quem estava na festa.
Sorteio realizado. Passada a tensão de ter que descrever, na frente de todos, as características do amiguinho e ter que abrir o presente misterioso – que quase sempre é uma bomba (ainda mais tratando-se de um amigo oculto sorteado na hora), eu estava contente com o meu kit de coisas de papelaria e aliviado por ter passado toda essa exposição. Por mais que ainda hoje eu seja bem tímido, naquela época, era mil vezes pior. Eu quase infartava só de ter que falar em público. E, como agravante, ficava com medo de receber algum presente “de menina”, já que algumas mães não entenderam muito bem o conceito de unissex.
Estava eu tranquilo com o meu presente, acompanhando apenas o final desta deliciosa atividade (só que não), quando uma grande amiga minha entregou para o seu amigo oculto um livro. O garoto ficou revoltado, voltando para o lugar (ao lado do meu) cuspindo marimbondos. Parecia até que tinha ganhado roupa ou algo pior. Acho que, se fosse ele, também enquadraria o presente na categoria de “pior”. Confesso, que a princípio, fiquei até aliviado por ela não ter me tirado. Mas, aí, entra em cena a honestidade da criança que não esconde de quem presenteou a indignação com o presente. É cruel. Fiquei numa sinuca de bico. Por mais que detestasse livros, não poderia compactuar com alguém deixando a minha melhor amiga numa situação de constrangimento.
“Eu troco o presente!”, falei sem pensar. O garoto não pestanejou, tirou o kit de coisas de papelaria da minha mão e me deu o livro. Nem deu tempo de dizer “adeus”. Espero que ela não tenha percebido o meu sorriso amarelo. Lembro apenas dela me perguntando se não tinha me importado com a troca. Respondi que não, folheando as páginas para não ter que encarar os seus olhos. Tinha sido uma decisão muito difícil. O kit foi um dos poucos presentes de amigo oculto que já gostei, até hoje. Mas era o que tinha que ser feito. Tive que fazer uma escolha.
Escolhas. É sobre isso que o livro fala. O Mistério da Múmia Desaparecida é muito mais que uma aventura no museu. É uma obra que transporta a criança para as páginas do livro, transformando-a em protagonista da história e dando a ela o poder de escolher sobre o próximo passo a seguir – é caracterizado como o gênero “Enrola e Desenrola”. E, sabe qual o melhor disso tudo? No final de cada leitura, você pode voltar ao começo, tomar outras decisões e ler um livro completamente diferente.
É óbvio que não foi fácil quebrar o meu bloqueio com a leitura, mas, como precisava mostrar para a minha amiga que realmente tinha gostado do presente, fiz o sacrifício. E não é que foi uma boa escolha? Nem consigo imaginar como seria se eu não tivesse trocado o presente. Acho que essa foi a melhor leitura “obrigatória” que eu já li. Tanto que, depois desta experiência, pedi para a minha mãe comprar outros exemplares do gênero. E isso foi um grande feito! Decidir quais aventuras enfrentar e quais caminhos seguir, sem dúvidas, fez toda a diferença. O poder da escolha acabou sendo a melhor forma de aproximação minha com os livros. Ainda bem.