A Dança da Água, de Ta-Nehisi Coates | Resenha
‘A Dança da Água’: um livro necessário, urgente e transformador
Primeiro livro de ficção do premiado jornalista Ta-Nehisi Coates, que integrou a caixa de julho do Intrínsecos, clube de assinatura da editora Intrínseca, A Dança da Água é de grande importância. Urgente. Sinceramente, esta resenha nunca vai chegar aos pés da obra e nem me atrevo a achar que tenho o direito de analisá-la. Contudo, vou tentar com toda consciência e seriedade compartilhar um pouco da minha experiência com esta leitura e toda a reflexão que este livro causou em mim.
Visão do escravizado
Meu papel foi contar a história do escravo. Para a história do senhor não faltam narradores.
Frederick Douglass
Boa parte de nós aprendeu sobre escravidão na escola. Há também alguns livros, representações cinematográficas e televisivas sobre esse período desumano. No entanto, se fomos parar para pensar, qual perspectiva da escravidão nós temos? Após concluir a leitura de A Dança da Água (cuja citação do abolicionista norte-americano Frederick Douglas compõe a epígrafe), percebi que essa perspectiva é bastante superficial e parcial. E que, no fundo, não chega nem perto de representar o horror que foi.
A Dança da Água se passa no século XIX e mostra o começo do declínio das plantações de tabaco que enriqueceram os senhores de terra por toda a América. E é neste cenário que conhecemos o protagonista Hiram Walker, filho ilegítimo de Howell Walker, dono da propriedade Lockless, situada na Virgínia, nos Estados Unidos. Ciente da necessidade de um substituto para administrar suas terras, Howell não pode contar com as aptidões de seu único herdeiro, Maynard, justamente porque ele não possui nenhuma. E Hiram, além de bastardo, é um escravo. No entanto, após um acidente no rio Goose, a vida de Hiram é poupada e ele descobre um poder oculto dentro de si, herança materna, perdido em meio às lembranças de sua mãe, que fora vendida e quem nunca mais viu. A partir daí, surge uma necessidade urgente em Hiram de escapar e lutar não apenas pela sua liberdade.
Ser narrado em primeira pessoa é um dos trunfos de A Dança da Água. Acompanhar o relato de Hiram é duro, incômodo, emocionante e arrebatador. Hiram, dotado de uma memória infalível, é daqueles personagens cujas construção e evolução são um presente do autor para nós, leitores. Acompanhar o amadurecimento do menino, vê-lo tentando entender o seu lugar no mundo e, acima de tudo, tomando consciência do seu papel em meio a uma realidade absurda e abominável mexeu muito comigo. E, acima de tudo, testemunhar através de suas memórias as atrocidades cometidas comove e nos destrói, ao mesmo tempo. Fere a alma. Estar na mente de alguém que passa por algo que eu sequer consigo mensurar, entender seus medos, suas inseguranças, seu sofrimento, é sufocante. Porém, necessário. E, por isso mesmo, eu digo que este livro me transformou.
Lugar de fala
É claro que com o que aprendemos ao longo das nossas vidas temos a consciência de todo esse absurdo e do horror infligido. Mas nunca tivemos, de fato, a real noção. E nós, brancos, nunca teremos. Nunca será o nosso lugar de fala. E é preciso que a gente entenda isso. Não temos o direito de reivindicar absolutamente nada em relação a este momento. Pelo contrário. Temos que assumir o nosso papel opressor, cruel e repugnante nisso tudo. Entender que o que temos, hoje, foi construído há muito tempo em cima de muito sofrimento, da opressão de um povo. E precisamos lutar para reparar isso. Sim, a reparação histórica é necessária. Urgente. Porque o que feito, essas atrocidades cometidas não têm perdão. As famílias desfeitas, as vidas perdidas não têm volta. As histórias que foram perdidas.
Eu senti um misto de vergonha, de tristeza profunda e de raiva, ao longo da leitura. Pela primeira vez na minha vida, o peso de ser branca se abateu sobre mim. E me envergonho por ter demorado tanto tempo para sentir isso. Sempre me considerei antirracista e solidária à causa. Prezo a igualdade e a liberdade de qualquer ser humano mais do que tudo. Mas foi com A Dança da Água que entendi que a reflexão era muito maior. Precisa ser muito maior.
E é por isso que eu também estou com tanta dificuldade de escrever a minha resenha. Porque, agora que eu entendi e que sei que ainda tenho muito a aprender e a reparar, sei que preciso tomar todo o cuidado para que este texto não dê a impressão de ser uma declaração cheia de autocomiseração. Porque o foco não sou eu, nunca poderia ser. Espero apenas conseguir trazer a reflexão que me foi proporcionada. Todos os sentimentos que este livro me despertou.
A narrativa de Ta-Nehisi Coates
Eu não conhecia Ta-Nehisi Coates nem o seu trabalho, mas fui surpreendida pela sua narrativa. Em seu primeiro livro de ficção (Coates é considerado uma das vozes negras contemporâneas de maior relevância), fui completamente arrebatada e envolvida pela visão de mundo de Hiram. Achei uma mistura de lúdico quase com prosa, em alguns momentos. A sensação que tive, ao longo da leitura, foi a de estar sentada na Rua com Hiram ouvindo pessoalmente o protagonista de A Dança da Água contar a sua história. De uma maneira que eu nem percebi, o ritmo fluiu como se estivesse acompanhando as águas do rio Goose.
As descrições dos ambientes, de Lockless, da Tarefa (como ele se refere à escravidão no livro), das agressões sofridas. Tudo escrito com muito cuidado e, ao mesmo tempo, muita dureza. E também não faltou sensibilidade, seja com os diálogos trocados com a sábia Thena, ou com os momentos com Sophia, Raymond, Otha e outros personagens sobre os quais não posso me aprofundar muito sem acabar dando spoiler. Assim como a questão da Condução, que, para mim, foi o arremate fantástico misturado a lembranças e experiências pessoais. Novamente, achei tudo muito sensível, poético. Meu livro está cheio de marcações, tamanha beleza e profundidade do texto.
Personagens, família
A Dança da Água vai além da escravidão. Fala sobre perdas, luta, amor, responsabilidade, família. Coates não se omite nem nos poupa – e nem deveria mesmo – ao trazer as dores das famílias separadas, despedaçadas com a venda de seus parentes. É desesperador acompanhar todo esse sofrimento. Mães que nunca mais verão seus filhos. Um terror difícil de suportar. Ao mesmo tempo, temos também a luta, a resistência. As tentativas de fuga, o sonho da liberdade e a consciência de que essa luta traz consequências. E de que não é uma luta individual.
Hiram, por sua vez, é tão “real”. Ele poderia até apresentar traços de arrogância, devido à inteligência e à memória infalível. E por ser filho ilegítimo do senhor de Lockless. Mas não. Hiram é puro. Ingênuo, até. E acompanhar a sua trajetória é incrível. Seu senso de justiça e o seu papel social são notáveis. Perceber, junto com ele, que tudo isso está acima dele, de seus próprios desejos e anseios. É por um povo. É por dignidade. É por liberdade. É por justiça.
Leitura obrigatória
A Dança da Água é um livro obrigatório. Principalmente no momento que estamos. No mundo em que vivemos. Eu só agradeço por ter tido a oportunidade de lê-lo, pela transformação que ele me causou. E, por tudo isso, no alto de todo o meu privilégio, eu peço as mais sinceras desculpas. A Dança da Água é um retrato implacável do passado para que possamos repensar o presente e melhorar o futuro.
Título: A Dança da Água | Autor: Ta-Nehisi Coates | Tradutor: José Rubens Siqueira |Editora: Intrínseca | Páginas: 400
2 Comentários
Barbara
É um ótimo livro e realmente muito necessário, fiquei um pouco desapontada com o personagem principal pq esperava mais dele, achei que em alguns momentos ele foi muito egoísta e não entendeu o que a Clandestinidade fazia de vdd, e com isso só pensava nas pessoas próximas a ele, também senti falta de um final para a história do Otha e da sua família que ele tanto queria reunir.
Vai Lendo
Oie, Bárbara!!
Tudo bem? Mil desculpas pela demora em responder, mas foi uma semana corrida por aqui.
Achei bem interessante o seu ponto de vista e entendo perfeitamente!
Mas eu não consigo achar o Hiram uma pessoa egoísta. Por tudo o que ele passou, viu e sofreu, não consigo condená-lo por querer ajudar as pessoas que ele ama e que são importantes pra ele, depois de ter que abrir mão de tanta coisa. Inclusive, acho que a decisão que ele toma no fim do livro, na minha opinião, mostra que ele entendeu que aquela luta está acima dele e de seus desejos pessoais.E entendeu o seu papel e função dentro da Clandestinidade. Não posso falar mais pra não dar spoiler!
hahahaha
Sobre o Otha, eu também queria que tivessem mostrado, mas eu vou ficar na esperança de que deu tudo certo! hehehe.
Muito obrigada pelo seu comentário!! 🙂
E que bom que também gostou do livro!!
Beijos,
Ju