Coração de Tinta, de Cornelia Funke | Resenha
‘Coração de Tinta’: uma exaltação do amor pelos livros
Qual leitor nunca ficou tão imerso em uma história que teve a sensação de os personagens ganharem vida? Imagina se isso realmente pudesse acontecer, e eles saíssem da folha de papel e interagissem com você? Não seria fantástico e cativante? O problema é que, quando a magia torna esta ação possível, não apenas os caras ditos “bonzinhos” invadem o mundo real, mas também os vilões inescrupulosos sedentos por maldades. Aí, aquele que estava acostumado a ler, e que muita vezes fica fascinado pelo personagem – afinal, em grande parte da história ele rouba a cena e sustenta toda a obra -, é surpreendido por uma figura cruel disposta a aterrorizar de verdade. Agora, meu caro amigo, não adianta fechar o livro que ele não vai sumir. Então, aproveite a leitura e se jogue na aventura proposta pela escritora alemã Cornelia Funke, em Coração de Tinta, publicado aqui no Brasil pela Companhia das Letras.
A magia de trazer para a realidade personagens fictícios é o tema central da história escrita por Funke. No passado, alguns deles saem misteriosamente das páginas de um livro chamado Coração de Tinta, mesmo título da obra, e ganham vida. A partir daí, eles são obrigados a se adaptar ao “mundo real”. No entanto, enquanto um saltimbanco cuspidor de fogo chamado Dedo Empoeirado não vê a hora de voltar para dentro da narrativa, o cruel vilão Capricórnio nem pensa em ir para a casa; ele quer mesmo é usar a sua força e poder para aterrorizar as pessoas. Agora, para evitar que o mal domine o mundo, Mo, um restaurador de livros, precisa abrir mão de segredos do passado para, junto de sua filha de doze anos, Meggie, a tia de sua esposa, Elinor, e outras criaturas fantásticas combater o vilão e colocá-lo em seu devido lugar, isto é, de volta para o livro.
Coração de Tinta é uma aventura para quem é apaixonado por livros. Além de retratar o desejo compartilhado por inúmeros leitores de que os personagens ganhem vida, a obra faz várias referências a outros títulos. Logo no começo de cada capítulo, por exemplo, é possível ler trechos de clássicos como As Aventuras de Huckleberry Finn, Peter Pan e O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa (As Crônicas de Nárnia). O grande barato destas citações é que a autora consegue se apropriar do trecho transcrito para uma situação a ser explorada naquele capítulo, mesclando as narrativas. Um fato interessante que ocorre em dado momento é que alguns personagens de obras consagradas também saem das páginas dos livros, mas não vou dizer quais são. Deixo você descobrir.
O modo como Cornelia Funke escreve e caracteriza os personagens também reforça este fascínio que os livros exercem nos leitores. Mo é retratado como um médico que cura livros danificados e transforma-os em novos. Meggie é uma criança devoradora de histórias. Elinor tem uma biblioteca invejável e passa o dia inteiro mergulhada no faz de conta. Ela, inclusive, prefere a companhia de um livro do que se relacionar com outras pessoas. Em Coração de Tinta, todos os personagens que não saíram da ficção possuem uma íntima relação com os livros, sendo possível, durante a trama, ver o carinho que eles têm com todo o universo literário. É impossível não se identificar com eles!
Outro grande destaque do livro é a maneira como, o autor do Coração de Tinta, encontra os personagens que criou: Dedo Empoeirado e, principalmente, Capricórnio. É simplesmente fantástico! As situações e os diálogos expressam de um modo bem interessante como seria a inusitada reunião entre criador e criatura. Falando no grande vilão, Capricórnio é um personagem cativante, mas confesso que não gostaria de vê-lo andando por aí. Ele é aquele vilão clássico, inescrupuloso e cruel, porém, em se tratando da temática da obra, o clichê se torna um ingrediente a mais para a aventura ser tão empolgante. Afinal, é difícil encontrarmos uma pessoa com uma essência tão maligna por aí (assim esperamos).
A leitura do livro acontece de forma envolvente, literalmente mágica. Quando menos notar, você já vai estar inserido naquela trama e vai ser difícil desgarrar. No entanto, um deslize na apresentação da sinopse tira um pouco do mistério da história, já que o texto de divulgação antecipa um fato que só acontece lá pelo capítulo 16. Observe:
Há muito tempo Mo decidiu nunca mais ler um livro em voz alta. Sua filha Meggie é uma devoradora de histórias, mas apesar da insistência não consegue fazer com que o pai leia para ela na cama. Meggie jamais entendeu o motivo dessa recusa, até que um excêntrico visitante finalmente vem revelar o segredo que explica a proibição. Quando Meggie ainda era um bebê, a língua encantada de Mo trouxe à vida alguns personagens de um livro chamado ‘Coração de Tinta’. Um deles é Capricórnio, vilão cruel e sem misericórdia, que não fez questão de voltar para dentro da história de onde tinha vindo e preferiu instalar-se numa aldeia abandonada.
O segredo que poderia ser um trunfo para prender o leitor no começo do livro é escancarado na sinopse e torna os primeiros capítulos um pouco desinteressantes. Afinal, uma das grandes virtudes de uma obra literária é você mergulhar nas dúvidas de uma personagem, no caso Meggie, e tentar confabular junto com ela o que está acontecendo. “Por que os homens de um tal Capricórnio estão atrás de seu pai?”. Infelizmente, a escolha adotada rouba esse suspense, e Coração de Tinta perde a chance de ser algo mais instigante desde o início. Independente do equívoco, a obra faz jus à sua proposta brilhantemente, e o leitor tem a oportunidade de vivenciar uma ótima aventura através das páginas de um livro.
Apesar de existirem outros dois volumes complementares (Sangue de Tinta e Morte de Tinta), Coração de Tinta apresenta um final conclusivo. Não senti muito a necessidade de continuação, a não ser para a autora explorar um pouco mais a essência/origem dos personagens. Talvez, preencher aquela vontade do leitor de saber o que acontece depois do ponto final.
Saiba onde comprar:
Amazon – Fnac – Livraria Cultura – Livraria Travessa – Saraiva – Submarino