Quatro Estações, de Stephen King | Resenha
‘Quatro Estações’: as multifacetas de King
Quatro histórias interessantes, criativas e com personagens intrigantes. Stephen King foge, em boa parte do tempo, do gênero que o consagrou e mostra um talento que transcende o horror nos quatro contos que compõem a obra Quatro Estações, publicado pela Suma de Letras. O livro permeado pelas estações do ano, originalmente lançado nos EUA em 1982, me despertou o interesse pelo fato de ser o local onde se encontra o conto O Corpo, que serviu como base para o filme Conta Comigo, clássico da Sessão da Tarde, um dos meus favoritos. Foi por causa dele, inclusive, que comprei o livro. No entanto, fazem também parte da coletânea outras tramas que foram adaptadas para o cinema, como Aluno Inteligente, que originou o filme O Aprendiz e Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank, que, nas telonas, virou Um sonho de Liberdade, além do conto O Método Respiratório.
Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank (Primavera Eterna) abre Quatro Estações com a história de Andy Dufresne, um banqueiro que foi para a penitenciária de Shawshank acusado de matar a esposa e o amante. Andy jura inocência e, ao longo dos anos, o leitor acompanha sob a perspectiva de Red, outro detento, as histórias que geraram a criação do mito em torno da figura de Andy Dufresne. Em seguida, conhecemos Aluno Inteligente (Verão da Corrupção) e a história do adolescente exemplar Todd Bowden, que descobre que o vizinho é, na verdade, Kurt Dussander, um ex-oficial nazista responsável por diversas atrocidades. O que no início se apresenta como uma chantagem, por parte do jovem, se transforma em obsessão e aflora na maldade do ser humano. O Corpo (Outono da Inocência), terceiro conto, retrata uma expedição de quatro amigos para encontrar o cadáver de um jovem morto pelo trem. A história é narrada por Gordie Lachance um destes meninos que posteriormente virou escritor. Durante esta aventura, King trabalha alguns temas, como a morte e a amizade, de forma única. Uma história aparentemente banal, mas repleta de significado. Para fechar, em Inverno no Clube, conhecemos um lugar onde a diversão é ouvir histórias, incluindo o sombrio O Método Respiratório. O conto que mais se aproxima do gênero que consolidou Stephen King.
Quatro Estações é um profundo mergulho na natureza humana; revela medos, esperanças e impulsos. Explora diversas facetas do ser humano, desde seu mais puro desejo de ser livre à sua mais apavorante crueldade. Acompanhamos o dia a dia de personagens comuns e suas histórias envolventes, que prendem o leitor até a última página. Apesar de se distanciar do sobrenatural, King consegue provar a sua diversidade e talento. Afinal, ninguém narra como ele.
Sou muito fã do autor, porém, um ponto me incomodou no livro e é preciso sinalizar. A falta de objetividade é perceptível em praticamente todos os contos. Alguns trechos, inclusive, poderiam ser retirados, sem fazer a menor falta. A fluidez da leitura é atrapalhada por detalhes desnecessários ou por outras histórias. O conto que inspirou o filme Conta Comigo, por exemplo, é interrompido em dois momentos por trechos de histórias criadas por Gordie Lachance. Uma delas, aliás, é a do campeonato de tortas (que ele conta para os amigos durante a expedição). Uma das minhas cenas favoritas da obra cinematográfica. Confesso que até me emocionei quando li. No entanto, em termos de narrativa de O Corpo, sem o apelo saudosista a que remete a minha pessoa, ela é uma quebra desnecessária.
(Tive que colocar a cena, não resisti!)
Mesmo com esse problema de quebra, O Corpo foi meu conto favorito. Talvez, por já ter um apego emocional da minha infância, afinal, não estou imune a essas influências. No entanto, a história fala sobre amizade de um jeito único, sensível e crível. Não existem pudores. King trabalha a união de um grupo de garotos, a vontade de embarcar em uma aventura, problemas com pais, o luto e a perspectiva de futuro de uma forma diferente do usual e bem interessante. Mesmo tento uma pegada aventureira, o conto tem seus momentos de terror, como a razão que leva os jovens a realizar esta viagem: ver um corpo de um menino morto. Pensando friamente, é algo assustador! Porém, esta curiosidade permeia o imaginário dos jovens. Esta abordagem de amizade é o grande diferencial da obra e o que mais me fascina.
O conto que abre Quatro Estações segue na minha sequência de preferência. A prisão é o cenário proposto por King e o autor questiona a inocência, a recuperação do preso e como um sistema pode ser mais corrupto, dependendo de interesses diversos. Apesar de algumas voltas um pouco excessivas, a trama é bem envolvente e a mais bem narrada. Me agrada a narração do detento Ted e o posicionamento de que ele nem sempre é detentor da verdade. Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank foi o conto em que eu senti mais Stephen King como narrador. As suas peculiaridades e seu jeito inconfundível.
Já Aluno Inteligente abusou um pouco do quesito ficção e foi o conto que eu menos gostei, apesar de eu ter adorado o filme O Aprendiz. A história traz uma temática fascinante (Nazismo e Segunda Guerra Mundial) e bons questionamentos, como a definição de mocinhos e de vilões em uma guerra e até aonde vai o limite da maldade humana. A relação de Kurt Dussander com o garoto é tensa, envolvente e intrigante. Podemos ver a evolução do relacionamento na trama e até este ponto estava muito satisfeito com o que eu lia. No entanto, no fim, a narrativa me decepcionou. Algumas saídas encontradas por King foram fáceis. Coincidências que extrapolam o bom senso, até culminar no inspetor da escola, num momento de tédio, procurando o avô de um aluno na lista telefônica para bater um papo. Para! Tudo bem que é ficção, mas achei surreal. Perdi um pouco o tesão pelo conto a partir daí. Não dava para levar a sério.
OBS: faz mais de 15 anos que eu vi o filme O Aprendiz e não lembro exatamente de como a produção costurou o desfecho da trama. Até procurei para rever, mas não consegui. Se a adaptação manteve essa cena da lista telefônica exatamente como o livro, acho que preciso reavaliar minha opinião sobre o filme.
Enfim, continuando…
Quando falamos de King, pensamos, é claro, no terror. Apesar de o livro Quatro Estações mostrar uma outra faceta do autor, não poderia faltar uma história com uma pegada mais sombria, e O Método Respiratório, que fecha o livro, é este exemplo. A narrativa tem duas vertentes: o misterioso clube e a história que é contada neste espaço: sobre um médico e um novo método para a hora do parto (que dá título ao conto). Demorei um pouco para me situar na trama. Durante a leitura, parecia que a parte que apresenta o clube estava meio exaustiva e desnecessária, porém, após a leitura de O Método Respiratório – que é uma narrativa de tirar o fôlego -, o clube se configurou como algo igualmente interessante. No fim, fiquei querendo até um pouco mais. Esse lugar é impressionante. Um prato cheio para inúmeras outras histórias*.
Apesar da independência, os contos têm algumas ligações uns com os outros. É possível ver o personagem do banqueiro Andy Dufresne, no conto Aluno Inteligente. Em O Corpo, vemos referência à prisão de Shawshank. E acredito que devam existir outras conexões. Porém, a que mais causou reflexão foi a máxima “O importante é a história, não o narrador”, presentes no primeiro e último conto. Sério, fiquei bastante tempo pensando nisso! Acredito que a historia tem que ser boa, mas o narrador, na minha opinião, faz toda a diferença e o próprio Stephen King é a prova disso. O modo envolvente como ele apresenta uma história é uma das maiores qualidades do seu trabalho. Todavia, podemos pensar que, se a trama for boa, o narrador pouco importa. Mas será? Ainda tenho certas dúvidas sobre este ponto de vista, no entanto, o ideal deva ser o casamento perfeito entre narrador e narrativa (essa deixo para vocês refletirem!).
No fim, Quatro Estações traz Stephen King contando um pouco do processo de escrita desses textos, assim como as dificuldades de se distinguir a classificação de um conto para um romance. Depois de Sobre a Escrita, confesso que gosto muito de ouvir King falar diretamente com o leitor dentro da sua obra. É sempre muito prazeroso! Um encerramento em grande estilo para uma coletânea que, apesar dos obstáculos de objetividade, presenteia o público com ótimas histórias muito bem narradas e personagens formidáveis.
*O clube é inspirado na Sociedade Crowder, lugar onde um grupo de velhos se reúne, em uma data específica para contar histórias de terror vividas por eles,presente na obra Os Mortos-vivos, de Peter Straub. O conto O Método Respiratório é, inclusive, dedicado ao autor.
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