FLIPOP 2020 – Entrevista com Ibi Zoboi
No segundo dia da FLIPOP 2020, Isa Souza (IS), co-criadora do @blogparenteses, entrevistou a autora haitiana e norte-americana Ibi Zoboi, autora de Orgulho, publicado pela HarperCollins Brasil. E, olha, que entrevista. Confira:
IS – Os personagens e a própria história são fundamentados em um lugar geográfico e em um tempo que determina a construção social e a visão de mundo deles. Em Orgulho, esse lugar é o Brooklyn, mais especificamente Bushwick. Por que você escolheu escrever a história no Brooklyn? Foi por razões afetivas ou há mais por trás dessa escolha?
IZ – Há muitos motivos. Um deles é que eu sou de Bushwick, eu cresci lá. E a Bushwick que eu me lembro quando criança não é parecida em nada com a Bushwick de hoje em dia. Foi gentrificada. Quando eu era criança, o lugar tinha muita pobreza e crimes porque havia muito desemprego e vício em drogas. Com o passar do tempo, muitas casas históricas foram renovadas e novas pessoas começaram a se mudar para lá, mas ainda há nativos de Bushwick lá e eles tiveram que lidar com o contato com as novas pessoas. É um lugar em que há pessoas muito ricas e pessoas muito pobres. E eles interagem diariamente.
IS – Em Orgulho e Preconceito, da Jane Austen, também existe uma influência geográfica e temporal nas visões de mundo dos personagens. E a Lizzie (Bennet) é a personagem que concentra os maiores pontos de crítica social e ela vê e sente todos os conflitos sociais que perpassam a existência de uma mulher branca na Inglaterra do século XIX. Eu acho que a Zuri é uma personagem incrível porque ela concentra tudo isso e consegue carregar a responsabilidade desse peso crítico só como uma personagem feminina racializada poderia fazer no nosso tempo. Como foi para você construir esse paralelo entre esses dois mundos e épocas diferentes?
IZ – Foi muito fácil porque, enquanto Lizzie Bennet observava as classes mais altas, ela não estava participando dessa cultura. Então foi fácil julgá-la. E Zuri observou as novas pessoas chegando no seu bairro, ela está vendo todas as mudanças pela sua janela. Então é fácil para ela, julgá-la. Ela também não participa dela, como Lizzie. E ela é uma leitora da mesma forma que Lizzie. Ela faz perguntas, observações e julga. E, no livro, esse julgamento pode ser um defeito também. Mas foi fácil transformar Lizzie Bennet em uma adolescente afro-latina atual.
IS – É muito fácil fazer esses paralelos entre a perspicácia da Lizzie e da Zuri.
IS – O processo de gentrificação é o que provoca o encontro da Zuri e do Darius, mas não é romantizada em nenhum momento da história. A gente vê que é um processo complexo e que envolve muita dor. Por que escrever uma história de encontro e romance que acontece a partir de apagamentos e rupturas como esse processo de gentrificação?
IZ – O romance começa com Darcy, seus irmãos e sua família se mudando para a casa do outro lado da rua, mas o que eu descrevi no início do livro foi a casa em que Zuri mora. Ela vive em um apartamento de um quarto com mais seis pessoas. Ela divide seu quarto com suas outras quatro irmãs e seus pais. E ver a casa gigante do outro lado da rua ser transformada em uma construção linda em que só quatro pessoas viverão nela – mas os garotos são fofos – causa um conflito. Há ciúme, inveja, ressentimento, mas também há uma atração estranha. Essa tensão também estava em Orgulho e Preconceito e eu a traduzi para esse momento em que os jovens têm que literalmente se encarar, já que vivem um na frente do outro. E Zuri precisa se contentar que esse menino não é um menino branco – porque gentrificação envolve famílias brancas se mudando -, ele é um menino negro, assim como ela, mas ele tem mais coisas que ela, tem mais dinheiro, mais fundos e mais oportunidades do que ela. E como ele ousa se mudar para o seu bairro? Então, há um conflito complicado ali, mas também há romance, um romance complicado, assim como em Orgulho e Preconceito.
IS – Eu acho muito interessante como o livro faz isso de falar sobre raça e classe na relação dos dois. Como a raça aproxima e como a classe por ser tão distinta faz com que seja meio impossível eles se entenderem. Parece que eles vivem em mundos diferentes, mesmo os dois sendo negros e, quando isso é confrontado ali, é muito interessante a dinâmica.
IS – A Ibi traz uma narrativa europeia do século XIX para uma narrativa que se afirma constantemente e de diversas formas como parte da diáspora africana. Ela transforma a Elizabeth Bennet na Zuri Benit, que é filha de Oxum. Como foi o processo criativo para construir esse reconto numa história que é tão carregada de ancestralidade e referências negras, afro-latinas e caribenhas?
IZ – Eu precisei colocar isso na história por causa da localização. Orgulho é localizado no Bushwick e o bairro em que eu cresci é cheio de porto-riquenhos e dominicanos, nós éramos imigrantes desses lugares. Quando imigrantes chegam a novos lugares, eles trazem sua cultura e suas tradições consigo. Na Bushwick que eu cresci, tinham madinas e pastores e pastoras espiritualistas que viviam ali e as pessoas iam até eles para pedir ajuda. A casa vizinha da minha tinha galinhas no quintal e elas não eram para comer. Elas eram para cerimônias espirituais como santeria. Mesmo que a minha família não praticasse, tudo isso estava ao meu redor. Isso era parte do lugar e eu não queria apagá-lo só porque eu vou recontar um romance europeu.
IS – A Zuri é uma garota da periferia que ama ler – e eu me identifico muito com isso porque também sou – e ela encontra os seus próprios meios de acessar os livros e construir as suas referências literárias. Como foi para você o processo de construção de referências literárias dela e quais são essas referências?
IZ – No bairro de Zuri e em vários outros que eu vivi até bem pouco tempo, não há livrarias. Durante a minha infância no Bushwick, a biblioteca nem sempre era um lugar seguro para se ir por ser um lugar público; às vezes, tinha pessoas de vivência de rua lá e crianças arruaceiras lá. Então, o acesso aos livros era algo que requeria trabalho duro. No caso de Zuri, o seu pai é um leitor, eles dividem isso, assim como Lizzie Bennet e Mr. Bennet. Ela consegue seus livros de vendedores de rua. No Brooklyn, você vai em certos bairros onde compra-se roupas e comida e há vendedores de rua vendendo livros. Zuri consegue seus livros através do seu pai, da sua escola, mas não há livrarias e, muitas vezes, as bibliotecas não têm fundos suficientes.
Eu tirei isso da minha própria experiência com os livros. Na minha adolescência, eu tinha que achar os livros que eu queria ler.
IZ – Os meus livros favoritos dos últimos dois ou três anos são A Poeta X, da Elizabeth Acevedo, Long Way Down, de Jason Reynolds, Genesis Begin Again, por Alisha D. Williams, The Hate U Give (O Ódio Que Você Semeia), da Angie Thomas, Piecing Me Together, da Renée Watson.
IS – Você acha que há outros clássicos que poderiam ser reescritos e contextualizados nessas temáticas de raça e classe, desses conflitos trazidos para Orgulho, para os nossos tempos?
IZ – Eu adoraria recontar O Grande Gastby, de F. Scott Fitzgerald, e colocá-lo em algum lugar que normalmente não veríamos.
IS – Eu adoraria ver também.
IZ – Eu adoraria recontar essa história para adolescentes.
IS – Você mencionou as forças de referências de espiritualidade que você não pode deixar de fora. Tem alguma outra referência pessoal tão forte quanto essa que você achou que não poderia ficar de fora?
IZ – Eu acho que eu coloquei tudo lá… Teve até um momento que eles estavam no metrô, e em Nova York os metrôs são muito importantes. E eu deixei de fora propositalmente a violência e as drogas porque é o que as pessoas costumam pensar quando pensam em Brooklyn e outros bairros como ele. Há pessoas que vivem lá que não são parte da violência ou dos crimes. Há crianças lá que são amadas e protegidas.
IS – Assim como a Lizzie Bennet, a Zuri defende tudo o que ela acredita e faz questão de ser ouvida. Como tem sido a resposta das leitoras nesse sentido de identificação e com esse potencial de referência para garotas negras também?
IZ – Alguns leitores brancos tendem a não gostar de garotas negras que fazem questão de ser ouvidas. Elas são chamadas de personagens difíceis de simpatizar. Dizem que não conseguem se relacionar com essas personagens. Zuri não é vulnerável nesse sentido. A sua primeira introdução a Zuri é quando ela está sendo crítica aos novos vizinhos. Ela não é triste, não tem uma auto-estima baixa. Ela é confiante e crítica. E as pessoas normalmente não gostam de ver garotas assim. Eu a fiz assim de propósito porque Lizzie Bennet pode ser assim e ela foi chamada de feminista. Jane Austen foi chamada de feminista. E é por isso que ainda é estudada em ensinos médios e faculdades. Essa foi a reação negativa que eu tive dos leitores. Eles não dizem diretamente, mas é possível ver em resenhas. Alguns não gostaram da linguagem, acharam que não era “chique” o suficiente ou como aquela em Orgulho e Preconceito. É racismo e classicismo.
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