Uma das melhores leituras de 2020, já posso adiantar. O primeiro volume da trilogia Escravidão, lançado pela Globo Livros, é mais um excelente trabalho do jornalista Laurentino Gomes (autor de 1808, 1822 e 1889), que tem um talento único para narrar a História com uma linguagem arrebatadora e envolvente. O novo projeto do autor é resultado de uma pesquisa de seis anos, que atravessou 12 países e três continentes. Neste primeiro livro, Escravidão – Vol. 1, Laurentino retrata o primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares.
Falar sobre a escravidão é mergulhar na formação da identidade nacional. Conhecer o passado é fundamental para entender o presente e, assim, mudar o futuro. Enquanto não expormos as nossas feriadas, jamais evoluiremos como sociedade. E, quando temos uma obra que se propõe a ser uma ponte com o passado, isso, por si só, já tem grande valor. Concordando ou não, o importante é o debate em torno do tema, ainda mais quando se trata da escravidão.
Uma das características que mais admiro nas obras do Laurentino é a forma como ele narra a história. O autor não tenta trazer apenas um viés da narrativa. Através da pesquisa realizada, ele traz alguns pontos de vistas e, em alguns momentos, divergências. Sem dúvida, é bastante enriquecedor porque não tenta impor uma verdade absoluta, uma vez que cada personagem ou relato tem um olhar específico.
O outro destaque é a linguagem de fácil compreensão. Escravidão – Vol. 1, assim como os outros trabalhos do autor, tira o rigor do texto acadêmico, que serviu de base para a pesquisa, ficando mais próximo do público. Mesmo trazendo bastante informação, a narrativa não é, nem de perto, maçante. Pelo contrário, a experiência de leitura é muito agradável, com tramas e personagens envolventes. Uma escrita única que já virou a marca de Laurentino, na minha opinião.
Uma das coisas que mais me impactaram na leitura de Escravidão – Vol. 1 foi o desconforto provocado pelas crueldades praticadas contra os negros. Quando olhamos para trás, tendemos a abstrair os por menores. Os livros de História transformam tudo em fatos e, de certa forma, acabam suavizando os acontecimentos. Por exemplo, sabemos das condições precárias dos navios negreiros. Apenas isso! Que era insalubre, muita gente morria. Mas, quando vêm à tona os detalhes sórdidos (nas formas de torturas, acomodações de escravos, higiene, alimentação, estimativa com o número de mortos, entre outros), você fica chocado e seu olhar para o passado é influenciado, muda. É desumano! Confesso que o relato do mau odor, que anunciava a vinda dos navios negreiros, perturba a minha mente até agora.
O ponto mais polêmico de Escravidão – Vol. 1, é referente ao capítulo sobre Zumbi dos Palmares e a construção dos heróis nacionais. Neste momento, o autor debate a necessidade de se reescrever a história e seus personagens de acordo com a época e o contexto em que a trama é contada. Assim, ao questionar a figura de Zumbi, um herói em ascensão e que ganha cada vez mais notoriedade, é compreensível que gere algum tipo de revolta em parte do público.
No geral, considero o capítulo muito bem desenvolvido e argumentado. Confesso que refleti bastante sobre essa necessidade que nós, seres humanos, temos de buscar a figura de heróis para espelhar nossas ações, de como absorvemos apenas as virtudes e contextualizamos o personagem de acordo com os nossos interesses, desconsiderando o período histórico vivido por ele.
Faíscas geradas à parte, Escravidão – Vol. 1 é uma leitura obrigatória. Um livro enriquecedor em conteúdo, informativo e que fomenta o debate, nos mais diferentes aspectos, sobre um tema de extrema relevância e vasto, que nem cabe em um único volume.
É preciso falar sobre a escravidão. Entender os problemas causados por esta prática na sociedade brasileira. Temos que parar de passar panos quentes no passado. Assumir os erros e minimizar os danos causados, se é que isso é possível. Que venham os próximos dois livros da série!
Apaixonado por histórias, tramas e personagens. É o tipo de leitor que fica obsessivamente tentando adivinhar o que vai acontecer, porém gosta de ser surpreendido. Independente do gênero, dispensando apenas os romances melosos, prefere os livros digitais aos impressos, pois, assim, ele pode carregar para qualquer lugar.